Traz Outro Amigo Também foi um álbum gravado em Londres, em Abril de 1970, nos Estúdios da PYE Records (etiqueta representada em Portugal pela Editora Arnaldo Trindade-Discos Orfeu).
Quatro anos depois José Afonso voltaria a este emblemático estúdio para gravar o álbum “Coro dos Tribunais”. Pela primeira vez, José Afonso gravou no estrangeiro e, também pela primeira vez, sem o acompanhamento de Rui Pato, o instrumentista que muito justamente é conhecido pelo “viola da resistência”. Com efeito, o habitual companheiro das jornadas de música, foi impedido pela PIDE de embarcar no aeroporto.
O jovem Rui Pato, então estudante de Medicina em Coimbra, estava referenciado pela polícia política por ter participado nas grandes manifestações estudantis no ano anterior (1969) na cidade do Mondego. Mas é evidente que era também vigiado por ser um colaborador assíduo de Zeca Afonso e também de Adriano Correia de Oliveira.
Perante a inesperada situação, José Afonso teve que procurar rapidamente um substituto, tendo a escolha recaído em Carlos Correia (mais conhecido por Bóris), estudante de Coimbra, um viola que vinha da música rock, um pouco ao estilo dos Beatles.
No disco participou um segundo viola – Luís Filipe Colaço – também estudante de Coimbra, que já havia colaborado com Zeca Afonso nos dois álbuns anteriores. Durante a estadia em Londres para esta gravação, José Afonso conheceu e confraternizou com os cantores e músicos brasileiros Gilberto Gil e Caetano Veloso, que na altura se encontravam exilados na capital inglesa.
Este álbum inclui as seguintes canções:
1-Traz Outro Amigo Também
A canção que dá o nome ao álbum, é dedicada à memória de Miguel Ramos, combatente das Brigadas Internacionais na Guerra Civil de Espanha (1936-1939). Quando no início do poema se escreve “Amigo/Maior que o pensamento”, podemos constatar, mesmo em sentido figurado, o conceito que Zeca Afonso tinha de Amigo.
2- Maria Faia
Canção de cariz popular, também conhecida por “Moda da Azeitona”, e que ao longo dos anos tem sido muito divulgada. Foi recolhida por José Afonso na aldeia de Malpica do Tejo (Castelo Branco) na Beira Baixa.
3- Canto Moço
Este trecho, de grande sensibilidade e beleza, é dedicado a uma jovem rapariga, Maria da Graça Vilhena, que com apenas 15 anos de idade teve um papel importante no movimento estudantil de Coimbra em 1969. É uma canção que terá sido idealizada quando dos passeios que José Afonso fazia de barco na Ria Formosa, enquanto professor em Faro, na companhia de intelectuais e antifascistas seus amigos.
Reflete bem a pureza da poesia de José Afonso, sendo uma canção de fraternidade, onde é possível vislumbrar também a raiva de quem se sente vigiado.
4- Epígrafe para a arte de furtar
É uma canção baseada num poema de Jorge de Sena, ilustre escritor e poeta antifascista, durante muitos anos exilado nos E. U. A.
5- Moda do Entrudo
A letra é do cancioneiro popular, que era entoada ao som dos adufes. Canção recolhida por José Afonso na aldeia de Malpica do Tejo (Beira Baixa) com música de sua autoria.
6- Os Eunucos (No Reino da Etiópia)
Letra e música de Zeca Afonso, com uma bela melodia, e óptimo desempenho instrumental. É uma canção onde denuncia a indesejável presença de antigos políticos da ditadura, e sobretudo de membros da antiga polícia política, que regressaram depois do 25 de Abril, com a complacência dos novos governantes.
Com efeito, tratava-se de elementos que ainda num passado recente tinham criado cenários de terror, e muitos crimes como, por exemplo, o assassinato do general Humberto Delgado.
7- Avenida de Angola
Com este tema, referindo-se ao movimento e vivência numa grande avenida em Lourenço Marques, Zeca Afonso pretendia retratar a vida de prostituição nas grandes cidades dos territórios africanos.
8- Canção do Desterro (Emigrantes)
É um tema alusivo à emigração e ao exílio, que foi concebido enquanto professor em Moçambique (1964-67), na sequência da leitura de um artigo da revista “Seara Nova” sobre as causas da emigração portuguesa.
Consciente da realidade de um País estagnado e vigiado, José Afonso criou um dos seus mais belos poemas, incitando à liberdade de pensamento, no sentido da consciencialização política pela mudança anunciada.
9- Verdes são os campos
Canção recolhida na poesia lírica de Luís de Camões, com música de José Afonso, e que ainda hoje continua a ser muito apreciada. Apresenta uma melodia singela, num ambiente bucólico e pastoril, e terá sido um dos últimos trechos de José Afonso interpretado ao estilo de balada.
10- Carta a Miguel Djédjé
Numa toada claramente africana, faz referência ao grande mercado popular de Xipamanine, em Lourenço Marques, mas também fala na Ponta Geia, uma zona nobre de vivendas e jardins. É um tributo a Miguel Djédé, empregado negro do Zeca, em Moçambique, que tocava viola nas horas vagas.
Entretanto José Afonso, devido à perseguição política de que era alvo, na sua actividade de professor mudou de residência para uma região muito distante, e teve de despedi-lo. Acontece que um dia, sem avisar, estava José Afonso em Lourenço Marques, Djédjé apareceu à porta de sua casa com uma vassoura e uma guitarra na mão, o que comoveu o Zeca.
11- Cantiga do Monte
Esta canção, com letra e música de José Afonso, revela a sua grande sensibilidade para com o mar e toda a sua envolvente.
A 21 de Março de 1970, a Casa da Imprensa atribuiu a José Afonso, por unanimidade, o Prémio de Honra, pela “alta qualidade da sua obra artística como autor e intérprete e pela decisiva influência que exerce em todo o movimento de renovação da música popular portuguesa”.
Também a revista Mundo da Canção, promoveu uma votação em que o público considerou José Afonso o melhor intérprete de 1970, com o melhor disco e a melhor canção: “Canto Moço”. Numa breve deslocação à Bélgica, em Outubro desse ano, cantou no cinema Le Relais, em Bruxelas, a convite de uma associação de emigrantes portugueses.
Em Novembro de 1970, participa em Paris num recital da canção revolucionária portuguesa, no auditório do Teatro da Mutualité, com a presença de Luís Cília, José Mário Branco, Sérgio Godinho, Tino Flores e Zeca Afonso. Ainda em 1970, José Afonso foi votado em primeiro lugar pelos leitores do “Diário de Notícias”, para representar o País no VII Festival Internacional da Canção Popular do Rio de Janeiro.
Desloca-se então ao Brasil e canta “A Morte Saiu à Rua”, um trecho que havia dedicado ao pintor e antifascista José Dias Coelho, assassinado em Lisboa pela PIDE em 19 de Dezembro de 1961. Esta canção haveria de ser incluída depois no álbum “Eu Vou Ser Como a Toupeira” (1972).
O cantor e compositor galego Benedicto García Villar, quando ouviu o disco “Traz Outro Amigo Também”, prometeu a si mesmo: “que iria conhecer aquele individuo estranho que produzia semelhante magnetismo”. Benedicto deslocou-se então a Setúbal para falar com José Afonso, de quem se tornou grande amigo, tendo actuado juntos várias vezes, sobretudo na Galiza e nas Astúrias.
O LP Traz Outro Amigo Também, revela uma grande maturidade poética e musical de Zeca Afonso, representando um contributo importante para a renovação da música popular portuguesa. Para além deste álbum o cantor editou três singles em 1970: “Natal dos Simples”, “Resineiro Engraçado” e “Chamaram-me Cigano”, todos extraídos do LP “Cantares do Andarilho”, que havia sido publicado em 1968.
A esta altura, já José Afonso havia tornado o palco um espaço de partilha e fraternidade, não só entre os músicos e cantores, mas também com o público. A foto que incluímos neste artigo, que remonta a Junho de 1971, foi a última do cantor juntamente com os pais, o irmão (João) e a irmã (Mariazinha).

Texto da autoria de Manuel Pereira.
Manuel José de Jesus Pereira nasceu em 1946, na freguesia de Moncarapacho (Olhão). É colaborador frequente do jornal “O Olhanense” e dedica-se à investigação na área da cultura, principalmente na cultura, usos e costumes do Sotavento Algarvio. Entre os seus trabalhos e artigos, destacam-se “As Operárias Conserveiras”, “Os “Maios”, Um Ritual Secular no Concelho de Olhão” “Florbela Espanca, A Memória da Grande Poetisa, Escritora e Feminista” e “Cronologia dos 40 Anos Que Antecederam o 25 de Abril (1934 – 1974)”. Atualmente, está a trabalhar em dois projetos: “Figuras Ilustres e de Referência no Concelho de Olhão (Sec. XV – Séc. XX)” e “Freguesia de Moncarapacho – 550 Anos de História”.